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Uma
família habita os seis apartamentos de prédio que já viveu
mais afortunados dias. Sua história é marcada por
acontecimento que permanece há cinquenta e nove anos sem
explicação: amanheceu morta a jovem enfermeira que cuidava
daquela que era a matriarca, e, na biblioteca do prédio, foi
encontrada estranha declaração de amor, de um sádico e suposto
fantasma para a enfermeira morta. |
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A nova matriarca - Ana,
chamada de santa, Sant'Ana, pelos familiares, para lembrar-lhe
de que talvez seja louca - é o único membro da família que
ainda dá importância ao acontecimento antigo e acredita que o
autor da carta tenha sido, de fato, um fantasma. |
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No verão calorento, um desconhecido
visitante pede autorização a Sant'Ana para consultar os velhos livros
de sua afamada biblioteca. Ele busca colecionar curiosidades acerca
dos imaginários de outros tempos. Sant'Ana revela ao visitante a
história da família e este é tomado pelo desejo de desvendar a autoria
da carta, cinquenta e nove anos após. Ele desdenha da crença da
matriarca na autoria fantasmagórica. |
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O ainda jovem pesquisador de
imaginários frequenta diariamente o prédio e estabelece conversações
com os seus confusos moradores, que nunca respondem de forma precisa
às suas perguntas, nem o visitante satisfaz com respostas claras à
curiosidade dos moradores a seu respeito. |
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Além da obstinação em desvendar a
autoria da carta, o visitante torna-se possuído por outro objeto de
desejo: Silvinha, adolescente ousada, meiga e agressiva, roqueira
tatuada que pinta de vermelho os cabelos, por natureza, já vermelhos,
neta de Sant'Ana. |
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TRECHO DO LIVRO |
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“A vó é louca, sempre foi”,
informa Silvinha pela terceira vez na ainda breve conversa
desta manhã, roqueira tatuada, dois piercings no canto do
lábio inferior direito. Ana não se deixa intimidar pelas
risadas da neta. Sant’Ana, chamada assim pelos familiares,
quando tentam lhe impor que se cale, por ser lunática,
sustenta a tese de que o autor da carta foi mesmo um fantasma. |
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– Acredita-me – ordena
fixando-me nos olhos, Sant’Ana sempre ordena, nunca pede –
escrita ela pode ter sido por mão humana, a mão da própria
enfermeira morta, mas essa mão obedeceu ao que o encosto lhe
ditou. |
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É louca, é louca, repito em
silêncio as palavras que Silvinha canta com voz aguda olhando para o
céu. Silvinha Thrash, seu nome artístico. Sant’Ana ignora. Manda Lucas
buscar a pasta cinza, onde a carta está guardada. O guri pula da
cadeira. |
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– Meus filhos, noras e
netos não compreendem. Como poderiam? O José Carlos não fala em outro
assunto que não seja cheque sem fundo ou depósito que não entrou. Ele
é o gerente do banco ali da outra rua, já te falei, não é? Banco de
segunda categoria, ser gerente dele não é grande coisa. Minha ex-nora,
eles são divorciados, é corretora de imóveis. O novo marido dela
também. Vivem dizendo que estão para fechar uma grande venda, mas quem
paga o colégio da Silvinha é só o José Carlos. O que esperar dessas
almas? Poesia? Espiritualidade? É só dinheiro, dinheiro, vivem para
contar os centavos que vão faltar no fim do mês. E a Silvinha é essa
rebelde sem causa que tu estás a ver, acha que é revolucionária porque
toca guitarra e se veste de punk. |
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– Ei, qual é, vó? Sou a tua
melhor amiga. E não sou punk, thrash é outra coisa. Tu não entende
nada mesmo. |
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Sant’Ana não ouve o
protesto e prossegue no breviário familiar. O filho mais novo também é
materialista, com a diferença, em relação ao José Carlos, de estar
acomodado ao fracasso, o que não o impede de posar de garanhão e pedir
empréstimos a Sant’Ana para bancar o estilo de vida de playboy
remediado. |
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– E toco guitarra só de
brincadeira, quando é ensaio na garagem. Em show de verdade, sou a
vocalista da banda – Silvinha completa as informações, mais preocupada
em esclarecer-se para mim do que para a avó. |
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– Ei, vó, não achei a porra
da pasta. |
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O grito veio do alto. Lá
está, na janela do último andar, o rosto sardento. |
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– Na gaveta da penteadeira
no meu quarto, é sempre lá que guardo, Lucas. E controla a língua, não
precisas repetir em casa tudo o que a escola ensina. |
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– O móvel com espelho? |
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– É óbvio que sim, Lucas. |
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– Cor de asa de barata? |
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– Traz de uma vez a pasta,
Lucas. É a pasta cinza. Não é a marrom nem a preta. |
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Sant’Ana parece desolada. “Ele tem mania de dizer que meus móveis de
madeira nobre são da cor das asas das baratas. Tenho móveis de
pau-brasil, sabes? São herança de família, foram dos meus avós”.
Orgulha-se de uma Bíblia que a herança lhe transmitiu, capa em alto
relevo banhado em ouro. |
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– Não é só a cor das
baratas que os teus móveis têm, vó, são as próprias. Tu precisa mandar
dedetizar o prédio. |
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Acho engraçada a meiguice
de voz e semblante que ela assume quando implica com a avó, a malícia
de Silvinha tem os seus encantos. |
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Aí vem Gueli, a empregada.
Gueli, ou algo assim, ainda não entendi seu nome. Traz bandeja com
suco e biscoitos. Eu me sentiria melhor se ela não olhasse de jeito
atrevido para o meio de minhas pernas. |
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Silvinha captou o
olhar de Gueli. Sant’Ana nada viu porque está absorvida em descrever
os tempos antigos, olha para as nuvens enquanto fala. Vejo as nuvens
através da estamparia de flores brancas na ramagem da timbaúva. O
buldogue Ozzy Osbourne – Silvinha pôs-lhe o nome – persegue algum
inseto na relva crescida. |
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– Minha família não
compreende. Eles são materialistas, rasos. Acredita-me. As mãos que
datilografaram podem ter sido as da enfermeira, mas o verdadeiro autor
da carta foi o encosto. Ele continua aqui. Ele quer o mesmo que
desejava há cinquenta e nove anos. |
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