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Prefácio da Jaqueline

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TODO PENSAMENTO EMITE UM LANCE DE DADO.

Mallarmé

       Uma das marcas deixadas pelo século XX na história da humanidade será, sem dúvida, a da descoberta da palavra. Vivemos a época dos primeiros mergulhos na investigação do universo verbal e sua misteriosa interferência naquilo que até aqui chamávamos de realidade[1]. O século XX é quando alguns humanos – os grandes pirados do momento – começam a ser tragados pelo poço sem fundo da semântica – a palavra enquanto símbolo de símbolos de símbolos, buraco aberto para mares nunca dantes navegados.

       Como arte da palavra, é a literatura que, no início do século, dá a deixa e solta as amarras: “uma rosa é uma rosa é uma rosa”, afirma Gertrude Stein em frase antológica. A rosa de Gertrude não é e não se importa com a flor que prosaicamente chamamos de “rosa”; é, parafraseando Gil, a “rosa absoluta”. Declara-se a independência das palavras, guardiãs de um universo à parte – de uma realidade à parte. O uso que fazemos das palavras em nossa vida diária restringe-se à linguagem herdada, funcional, da comunicação convencional, que ajusta nossas experiências aos seus moldes. No campo da linguagem falada, diga-se de passagem, o alargamento da experiência humana – inclusive através da consciência cada vez mais profunda da multiplicidade do indivíduo e da infinitude de leituras possíveis da realidade – torna aquela linguagem herdada, aprendida na infância, insuficiente e trôpega, impondo-se cada vez mais a necessidade de uma ampliação da capacidade expressiva da fala humana. Mas isso é outra história. Falávamos de literatura.

        Nessa área, é interessante notar o grande número de poetas contemporâneos que se volta, num ou outro momento, alguns a vida inteira, sobre esse foco de interesse: de Mallarmé (a frase-título deste texto provém de poema mais que citado) a Gilberto Gil (uma lata existe para conter algo / mas quando o poeta diz “lata” / pode estar querendo dizer o incontível), passando por Fernando Pessoa (tudo é símbolo) e por experiências radicais como a de um Antonin Artaud ou, em outra ponta do cometa, a dos poetas do movimento concretista. As abordagens são várias – alguns investigam a palavra a partir de seus sons, formas gráficas, musicalidade, intuindo-lhes ecos de significados, despindo-as dele; outros, a partir de experiência vital/abissal, a palavra enraizada na gênese da relação do indivíduo consigo mesmo e com a realidade; e todos, provavelmente, se cruzando e misturando experiências em mais de um momento da trajetória.

        É por aí que vejo o trabalho do Nelson: como um modo de pesquisar a palavra enquanto instrumento de dominação, aquela que, socialmente imposta e impingida à criança que aprende a falar, se transforma num tirânico subproduto do poder (o poder, aqui, entendido como tudo aquilo que se opõe à liberdade, à alegria de viver, enfim: as hostes do Mal); a palavra que, organizada nesta ou naquela sintaxe, impõe ao pensamento uma lógica, um método, uma hierarquia, eliminando o indivíduo de suas experiências vitais[2].

       A partir daí, Nelson pesquisa – ludicamente, como convém – a relação palavra/elemento gráfico – palavra/sentido. Como em SIM SENHOR, um dos poemas cartum que compõem este livro, em que a senha para a ascensão na hierarquia militar, graficamente moldada para expressar isto mesmo, é a expressão mais comum da subserviência: sim, senhor. Ou nas montagens palavra/figura, que retomam, num outro astral, o trabalho do seu livro anterior, “O Jogo de Dados do Sr. Geral”, onde o leitor era solicitado a jogar com combinações de frases e desenhos que se repetiam e intercambiavam, alterando-se mutuamente os sentidos. Tratava-se, sem “O Jogo...”, de discutir o problema da loucura (as frases eram de pacientes de Ronald Laing, o psiquiatra rebelde, caro a Nelson). Em “Construções”, Nelson usou suas montagens para abordar temas ecológicos.

      É evidente que as leituras possíveis do livro não terminam aqui. Como o pensamento de Mallarmé, os poemas de Nelson emitem seus lances de dados – e nenhum deles conseguirá jamais abolir o acaso.

1.   Sintomas: desenvolvem-se e proliferam as ciências da linguagem: a Linguística, a Semiologia, a Semiótica; a Psiquiatria descobre o peso da palavra na estrutura da mente humana. A Literatura é caso tratado à parte.

2.     Em “A Maçã no Escuro”, épico de Clarice Lispector, o herói, Martim, rompe em mundo que lhe dava a sensação de vir pronto – “todos os nossos problemas já nasciam com uma solução” – para criar a sua própria linguagem, e com ela o seu próprio Martim. É bom ler o livro. Diz tudo e é um dos mais incríveis escritos em Português.

Jaqueline Vallandro
Livraria da Armação, março de 1983.

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